Texto escrito por Gabriel Priolli para o Observatório da imprensa que relata sobre o novo seriado da Globo - O Sistema, abordando, por meio do humor, o controle social, a manipulação e a necessidade de fugir desse "sistema".
Um cidadão comum, fonoaudiólogo, neurótico e estressado como todos os demais urbanóides que experimentam a provação de viver numa metrópole brasileira atual, é colhido num teste profissional de uma operadora de telemarketing. Ela quer deixar de ser "passiva", atendendo apenas a pedidos, reclamações e insultos, para tornar-se "ativa", vendedora de serviços e benesses a clientes que, em geral, não precisam deles nem os querem. E liga aleatoriamente para o telefone dele, para demonstrar à chefe que merece a promoção.
Por circunstâncias típicas desse tipo de contato social, há um desentendimento entre os dois e a moça é reprovada no teste, já que não apenas não vende nada como ainda irrita o cliente. Em vingança, ela decide apagar os registros do fonoaudiólogo em todos os cadastros a que tem acesso (e são muitos): bancários, previdenciários, de empresas telefônicas, etc. Com a maior facilidade, simplesmente "apaga" a existência civil do indivíduo, cuja identidade não é mais reconhecida por computador algum, de qualquer serviço público ou privado a que recorra.
Desesperado, o fonoaudiólogo luta para provar que não evaporou do mundo dos vivos e descobre que existe um movimento de resistência, um grupo de guerrilha, que combate arbitrariedades eletrônicas e informáticas de todo tipo. Isso inclui as cada vez mais onipresentes câmeras de vigilância, às quais desabridas guerrilheiras não perdem oportunidade de exibir os seios, num ato de repúdio e transgressão. Unida a esse grupo, a nossa vítima, antes apalermada, agora está próxima de se tornar herói numa insólita luta de libertação, bem sugestiva do espírito dos tempos que correm.
Experimento ousado
Em linhas gerais – ou melhor, em poucos bits – esse é o argumento central da nova série O Sistema, que a TV Globo estreou na semana passada. Concebida pelo trio José Lavigne, Alexandre Machado e Fernanda Young, a série é um experimento ousado de linguagem, que não paga qualquer tributo à teledramaturgia rastaqüera das novelas nem às minisséries, só um pouco mais ambiciosas. Bebe nas águas do cinema de vanguarda (do Matrix americano ao Cheiro do Ralo brasileirinho), dos quadrinhos autorais, da literatura contemporânea mais radical. E oferece um produto de difícil digestão para as platéias imbecilizadas pelo lixo cultural do mainstream da mídia, mas de humor refinado e prazeroso para aquela meia dúzia de telespectadores teimosos, que se obstinam em pensar em vez de entorpecer a mente, quando vêem as luzes piscando na telinha.
O que interessa no novo produto global, entretanto, é menos ele do que o debate conceitual que propõe. Sua contribuição está em recolocar a idéia de um "sistema" como ente abstrato e absoluto, mecanismo de controle social onipotente e inescapável, ao qual todos os indivíduos estão inapelavelmente submetidos, e que só pode ser combatido – quando alguém se dá o trabalho – pela violência revolucionária, posto que não há nada a fazer pelos caminhos institucionais.
É uma idéia cara à ficção, não apenas a nacional nem a contemporânea, talvez porque permita aos criadores um certo grau de análise política e de contundência crítica, sem ultrapassar os limites de suscetibilidade da indústria da cultura e do entretenimento, que lhes paga as contas. Se o sistema não tem rosto nem nome, pode-se bater nele à vontade e ainda ganhar dinheiro, nos meios de comunicação que justamente informam, conformam e sustentam a lógica perversa desse mesmo sistema.
Superação das metáforas do totalitarismo
O sistema como construção sobre-humana, monstro desgarrado do controle dos cidadãos comuns e preso a uma lógica interna, realimentada automática e autonomamente, já foi traçado com maestria pela alta literatura, de O Processo de Franz Kafka ao 1984 de George Orwell. Mas funcionava como metáfora do totalitarismo, flagelo político real da época em que as duas obras foram escritas.
Com a superação histórica desse perigo e o concomitante desenvolvimento dos meios de difusão cultural, a noção de sistema foi ganhando contornos mais difusos, menos ideológicos, sobretudo depois que o termo passou a ser um dos pilares da "novilíngua" da informática. Daí a sua ampla disseminação nos produtos culturais mais variados, muitos dos quais avessos a qualquer preocupação política efetiva.
Estamos fartos de ver bravos policiais norte-americanos tentando enfrentar os piores criminosos, com a oposição permanente do "sistema". Nos filmes de Hollywood, sempre há alguma maquinação superior, tramada em esferas inatingíveis, para proteger os mandantes e financiadores do crime, e seus aliados na justiça, na política e na própria segurança pública. O Bruce Willis de Duro de Matar, por exemplo, não teria se criado, não fosse o "sistema" a desafiá-lo em sua incorrigível rebeldia. Tiros e pancadas sobram para todo lado, algumas cabeças rolam, mas a máquina monstruosa jamais é desmontada de fato.
Transportando o tema para o Brasil, temos neste momento o sucesso retumbante de Tropa de Elite, no qual o protagonista capitão Nascimento agonia-se com a falta de saídas do jogo kakfiano em que foi aprisionado, culpando exatamente quem? O "sistema". Desfilam no filme todos os responsáveis pela tragédia social brasileira, mas no julgamento do próprio capitão – para não falar de incontáveis observadores externos – mesmo eles são, de alguma forma, vítimas da situação. Culpado mesmo é o "sistema". Sempre aquele ente abstrato, avassalador, super-poderoso, que nem vale a pena combater porque jamais será desmontado.
Graça no sistema indefinível
No seriado global, o humor está em pintar o absurdo desse "sistema" e a tentativa anárquica, alucinada, de denunciá-lo e combatê-lo. É nisso que reside a graça dos personagens e de suas ações. Mas não parece provável que, nos próximos capítulos, os elementos constitutivos do sistema opressor sobre o cidadão brasileiro – a ganância empresarial, o desprezo aos direitos sociais e individuais, a incompetência do Estado, a irresponsabilidade dos gestores públicos, a mediocridade e a manipulação da mídia etc – serão esmiuçados criticamente, para revelar ao espectador onde, afinal, ele se apóia. Até para a funcionalidade da narrativa humorística, convém que o "sistema" siga abstrato e indefinível, porque assim incomoda menos e pode até ser engraçado.
A situação vivida pelo fonoaudiólogo de O Sistema só é possível num Brasil em que as empresas têm mais direitos que os cidadãos, em que a pessoa humana só tem status se pode consumir, em que o Estado não regula a vida social e sim atende aos interesses da "elite" dominante. Num Brasil que tem leis que "pegam" ou "não pegam", que são respeitadas apenas por quem não pode pagar pela inobservância delas, que faz da luta por direitos mínimos uma tarefa de Brancaleones estóicos. Seria fácil identificar os grandes responsáveis por esse estado de coisas, e as formas de mudá-las. Mas não vale muito a pena, sobretudo se o que estamos fazendo é apenas... televisão.
"Antigamente, a gente lutava para derrubar o sistema. Agora, ele cai uns minutinhos e a gente fica desesperado." A piada corrente expressa mais do que a mudança de perspectivas, do mundo em revolução nos anos 1960 para a globalização conservadora da atualidade. Expressa resignação e cansaço, por um estado de coisas paradoxal, que a cada dia nos oprime mais, enquanto nos seduz e anestesia. Se é tão difícil mudá-lo, que ao menos seja possível rir dele.
sábado, 10 de novembro de 2007
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